QUANDO A DEMOCRACIA AMEAÇA A LIBERDADE

Quem tem acompanhado os últimos acontecimentos relacionados ao setor editorial brasileiro, pensa ter voltado trinta e cinco anos no tempo. Há poucos dias, o TSE simplesmente proibiu a emissora Jovem Pan de proferir determinadas palavras durante as programações. Para garantir o cumprimento da norma, um funcionário estatal postava-se qual agente soviético diante de jornalistas atônitos, fiscalizando-os abertamente.

Emitiu o voto de Minerva, em favor à medida, a ministra Cármen Lúcia. Com voz hesitante, em tom quase envergonhado, ela expôs a sentença em favor ao relator Alexandre de Moraes, embora desse a entender, nas entrelinhas, que se tratava de censura prévia.

A medida justificava-se, no entanto, pela existência de ameaças à democracia, visto que a emissora vinha, supostamente, tumultuando o processo eleitoral. Passadas as eleições, tudo voltaria ao normal: o Brasil teria de volta o discurso livre.

O presidente do PTB Roberto Jefferson, preso também por atos antidemocráticos e já cumprindo pena domiciliar, ousou discordar do voto da ministra. Por gozar de liberdade condicional, o político não poderia publicar em redes sociais. Em arroubo de cólera, no entanto, descumpriu a ordem e comparou a ministra, ora com uma bruxa, dada a sua aparência, ora com uma meretriz jurando castidade, uma vez que a magistrada teria rasgado a Constituição outras vezes.

De fato, o artigo 5º da Constituição Federal, no inciso IV, garante livre manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato. Já o inciso IX diz que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.

O que se cometeu contra a Jovem Pan, entretanto, trata-se de algo bem mais grave: censura prévia em nome da democracia. Haveria paradoxo maior? Eis o motivo da revolta do petebista Roberto Jefferson, que culminou com um dos maiores desastres políticos da história nacional: o ex-deputado mensaleiro reagiu à voz de prisão e atirou granadas contra os policiais federais designados a cumprir o mandado.

Ele errou? Decerto. Poder-se-ia, contudo, evitar o incidente cortando-se o mal pela raiz no exato momento em que se instaurou o disparatado inquérito contra ele, mandando a Constituição às favas. Mas a democracia falou mais alto. Nada mais justo do que punir condutas ditas antidemocráticas com censura e prisão, não é mesmo?

Assim como a Jovem Pan, o Brasil Paralelo passou por algo parecido. O canal veicularia um documentário no YouTube sobre o atentado à faca contra Jair Bolsonaro em 2018. O TSE, usando a mesma prática de censura prévia, proibiu o canal de publicar a matéria até o final do pleito, sob a estapafúrdia justificativa de que ela poderia influenciar eleitores.

Ora, mas não se trata disso uma campanha política? A que esta serviria se não para influenciar eleitores? A censura do TSE simplesmente condena a alma da política ao limbo e—pasme—tudo em nome da democracia!

Em verdade, os flertes dos tribunais superiores com a censura não vêm de hoje. Em 2020, prenderam o jornalista Oswaldo Eustáquio por manifestações antidemocráticas. Segundo o órgão acusador, que, aberrantemente, também atua como julgador, Eustáquio comportou-se de forma radical ao pregar fechamento do Congresso e do STF, apesar de inexistirem quaisquer vídeos ou textos dele com publicações nesse sentido.

Também há indícios de tortura no caso. Ele refere ter apanhado até “apagar” em uma cela da Papuda. Provas não há, mas o fato é que o periodista entrou na cadeia andando e saiu de lá paraplégico.

O também jornalista Welington Macedo de Souza teve prisão decretada pouco antes das manifestações de 7 de setembro de 2021 pelos mesmos motivos. Wellington, atualmente em prisão domiciliar e com tornozeleira eletrônica, não pode publicar em redes sociais por ordem judicial. Tampouco há quaisquer vídeos ou textos em que ele prega o fechamento do STF, apenas reportagens nas quais revela as dimensões que teriam as manifestações do dia da independência.

O pior dos casos, o do deputado Daniel Silveira, chocaria até agentes do Partido Comunista Chinês. Preso em 2021, por ordem de Alexandre de Moraes, sob alegação de apologia ao AI-5 e de críticas mordazes aos ministros da Suprema Corte, foi sentenciado a 8 anos e 9 meses de prisão em regime fechado a 20 de abril de 2022, por atos antidemocráticos, prática de agressões verbais e ameaças contra ministros do STF, além de incitar a animosidade entre as Forças Armadas e a Suprema Corte. No dia seguinte, recebeu indulto do Presidente Jair Bolsonaro, o que estremeceu relações entre os dois poderes.

Vale ressaltar que deputados gozam de imunidade parlamentar para articular qualquer tipo de pregação. Entretanto, para os deuses de toga, sempre vale quebrar uma regrinha e restringir algumas liberdades em nome da democracia.

Houve outros abusos: a ativista Sara Winter, o jornalista Allan dos Santos, o cantor Sérgio Reis, o caminhoneiro Zé Trovão, todos receberam ordens de prisão expedidas por Moraes. Allan exilou-se nos Estados Unidos; Zé Trovão, no México; Sérgio Reis escapou por pouco; Sara Winter não teve a mesma sorte. Não há limites à lei da mordaça, desde que ela amordace em nome da democracia.

Em 2021, por exemplo, o TSE mandou desmonetizar quatorze canais do YouTube por colocarem em dúvida a lisura do processo eleitoral. Segundo o tribunal, somos obrigados a crer na sacro-santidade das instituições. A última vítima do TSE foi o Brasil Paralelo, desmonetizado há poucas semanas. Enfim: quem ousar duvidar da idoneidade de qualquer corte judiciária, deve ser calado ou, até mesmo, preso. Democrático, não?

O grande risco de um sistema opressor quase onipotente encontra-se no efeito rebote. Quanto mais oprime, mais reações de intolerância e até de violência provoca. Vide a atitude de Roberto Jefferson.

O próprio Lula, candidato a presidente que prega explicitamente o controle dos meios de comunicação, disse orgulhar-se de ter apoiado a revolução sandinista na Nicarágua, que depôs o ditador Anastasio Somoza Debayle. De fato, caiu uma ditadura de mais de cinquenta anos.

O petista só desconsidera que, atualmente, a população nicaraguense sofre os efeitos de um totalitarismo ainda mais ferrenho, sob o comando do socialista Daniel Ortega, cujo regime persegue opositores, prende religiosos e cerceia a liberdade de expressão como nunca dantes. Enfim… um governo opressor possibilitou o aparecimento de outro, só que em sinal contrário. Grande vantagem!

Razão têm os americanos, que permitem até passeatas de grupos nazistas em bairros judeus. Você não leu errado! O Estado norte-americano não criminaliza nenhum tipo de discurso, por mais sórdido e abjeto que soe. Nazistas organizam passeatas livremente nos Estados Unidos. O nazismo lá cresceu? Não! Pelo contrário. A democracia fortalece-se cada vez mais em território yankee, porque os americanos sabem que o melhor meio de combate a ideias alicerçadas no ódio e na intolerância é deixar que seus asseclas falem. Eles que revelem o quão ignóbeis são. As pessoas percebem.

Se as cortes operam sob a égide do combate às fake news, que não interfiram. Deixem que se estimule a contenda com argumentos e contra-argumentos. Censura, jamais! Se apenas um lado separa o joio do trigo, não demora a reaparecer o joio, só que, agora, com o selo estatal de trigo puríssimo. A mentira inserida no discurso único toma aparência de verdade. Assim se edifica o pior de todos os cárceres: o das ideias.

Pluralidade de pensamentos constitui a viga mestra da democracia. Censurar o contraditório, tanto por meios legais quanto pelos tais cancelamentos politicamente corretos, tão em voga nos últimos anos, incentiva o discurso único. O discurso único, por sua vez, favorece o partido único, não importam quantas agremiações existam. Vivemos isso há pouco no Brasil: um sem-número de siglas compondo uma única ideologia: o socialismo.

Não nos esqueçamos de que o cerceamento da liberdade de expressão durante os governos militares da América Latina constituiu o principal estímulo à propagação de ideias de esquerda no continente, ideias essas que hoje dominam as universidades, as escolas, o meio artístico, os veículos de comunicação e boa parte do funcionalismo público. O efeito rebote, invariavelmente, chega com mais furor.

Enquanto os americanos gozam de liberdade irrestrita de expressão, graças à primeira emenda constitucional, por aqui, nossas instituições insistem em reprimir. Provoca medo até pensar nas possíveis consequências, em caso de derrota de Jair Bolsonaro nestas eleições. Basta um grupo de malucos, a exemplo de Roberto Jefferson, julgar ter havido prejuízo da candidatura bolsonarista devido a medidas restritivas da Suprema Corte Eleitoral.

Nos dois meses antes da passagem da faixa presidencial, pode haver uma nova versão da invasão do Capitólio em terras tupiniquins, ou coisa pior. Se algo nesse sentido ocorrer, que os ânimos acalmem-se logo. Afinal, a ministra Cármen Lúcia garantiu que o período de exceção terminará no dia das bruxas…Para quem nelas acredita, claro.

André Paschoal é médico e escritor.

1 Comentário

  1. ELOISA TERESA disse:

    Muuuito bom, para variar. Eu não consigo deixar de ser fã desse cérebro mesmo sendo doido hahah A analogia do final, genial.

    Curtido por 1 pessoa

Deixe um comentário